As águas que inundam casas e destroem sonhos
- spemrisco
- 18 de out. de 2022
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Atualizado: 18 de nov. de 2022
Moradores relatam o drama de morar em frente ao córrego que transborda durante as chuvas de verão.
As gotas de chuva caem no frágil telhado, encharcando cada canto daquele lugar. O som, que para muitos é quase uma música de dormir, para os moradores do Caboré, comunidade humilde do extremo leste de São Paulo, pode significar o início de um desastre.
Em uma noite, durante as temporadas das chuvas de verão, Cintia dos Santos acordou com a água já invadindo os cômodos de sua pequena residência. O desespero de quem mora em uma área de risco logo alcança seu semblante, e sua primeira reação é acordar os filhos pequenos. É preciso sair dali, mas a inundação não permite que a porta seja aberta. A dona de casa não sabe o quanto a água vai subir, então seu instinto a faz quebrar a janela enquanto pede por ajuda. Com o improvisado buraco feito, é por ali que ela e as crianças saem e procuram abrigo em meio as vielas estreitas da comunidade.
“Já estamos acostumados a ser meteorologistas”, diz Cintia.
A água, que causou a inundação, veio do córrego do Rio Aricanduva, que começa nas proximidades de Mauá e termina seu curso na margem do Rio Tietê, passando em meio a região. Com toda a sujeira e descarte ilegal de lixo, é possível encontrar crianças brincando a beira do córrego. As casas mais próximas, como a de Cintia, estão sujeitas às inundações, que trazem não apenas perda material, mas também doenças e mortes.

Em entrevista, a moradora Priscila Benedito, 40, relembra a morte do jovem Diogo Viveiros, 21, que ajudava outros moradores do Caboré durante uma inundação ocorrida em março de 2022. Ele foi arrastado pela força da água. Seu corpo foi encontrado sete dias depois, às margens do córrego de um bairro próximo, por uma criança que brincava nas redondezas.
Atualmente, o local, já repleto de moradias precárias e com 130 mil habitantes, ainda pode ter um crescimento populacional de quase 50% até 2040, de acordo com a última projeção realizada pela prefeitura. Mas será que este crescimento será de forma segura para a população?
Essa é a realidade de diversas comunidades no estado de São Paulo, na qual o cotidiano dos moradores tem sido afetado pela precariedade da urbanização, desigualdade social e mudanças climáticas.
São Paulo: a cidade mais populosa do Brasil
O crescimento desenfreado do estado de São Paulo nos últimos 100 anos é algo avassalador. Segundo a Fundação Seade, hoje com mais de 46 milhões de habitantes, a grande metrópole do país viu sua população aumentar em 75 vezes, comparado aos 600 mil moradores que haviam em 1920. Já na década de 60, se tornou a maior cidade do Brasil e agora possui mais habitantes do que países como Grécia e Portugal.
Um dos motivos desse boom habitacional foi a chegada de cerca de 4 milhões de imigrantes vindos, principalmente, da Europa entre o final do século XIX e início do XX. Na mesma época, o mercado cafeeiro elevou a economia do país e foi o grande responsável pela introdução da ferrovia no estado.
Após esse período, houve outro movimento crescente da população, principalmente até as décadas de 1970 e 1980. Com a alta quantidade de indústrias e ofertas de empregos, brasileiros de outros estados migraram para São Paulo em busca de uma vida melhor.
Houve um aumento no número de nascimentos, que em 1982 chegou a mais de 250 mil e hoje se aproxima de 160 mil, a idade média dos paulistanos também subiu. De 1920 a 2021, o ciclo de vida da população cresceu 12 anos e a quantidade de idosos com mais de 65 anos deve se igualar aos jovens de até 15 anos até 2034, ou seja, a população tem tido maior longevidade.
Com mais pessoas, e as altas de preços do mercado imobiliário, a saída foi buscar moradias mais distantes dos grandes centros urbanos que, em sua maioria, são construídas de maneira frágil, de alvenaria e com um único cômodo para acomodar várias pessoas, muitas vezes sem o mínimo de saneamento básico.

Essas áreas, consideradas vulneráveis, tiveram um crescimento de 20% na última década. Um levantamento feito pelo IBGE, mostra que São Paulo é a segunda cidade do país com mais áreas de risco, ficando atrás somente para Salvador, na Bahia. A pesquisa revelou que 670 mil pessoas moram próximas de terrenos e encostas ameaçadas de deslizamentos na região paulista.
Na região metropolitana, dados da Defesa Civil apontam que, entre as 38 cidades, existem 578 mil casas em áreas de risco alto ou muito alto. As construções estão em locais próximos a encostas, com morros e margens de rios.
O monitoramento de desastres
Além do crescimento populacional, os registros de desastres aumentaram significativamente no país durante as duas últimas décadas. Entre os anos de 2007 a 2011, casos como as chuvas intensas no Vale do Itajaí, em Santa Catarina, enchentes e inundações em Pernambuco e Alagoas, até deslizamentos e mortes no Rio de Janeiro, causaram danos irreparáveis na vida cotidiana de seus moradores.
Mas foi em 2011 que o pior aconteceu. As chuvas intensas no mês de janeiro afetaram drasticamente sete municípios na região serrana do Rio de Janeiro. O local, caracterizado por montanhas e coberto pela Mata Atlântica, se tornou propício a deslizamentos e enchentes devido sua estrutura íngreme e chuvas intensas que afetam o solo.
De acordo com o Instituto Nacional de Meteorologia, naquele período choveu em 24 horas o que era esperado para o mês inteiro. Com isso, entre os dias 11 e 12 de janeiro, regiões inteiras ficaram encobertas de lama e mais de 900 pessoas morreram no desastre.
Até este momento, as possibilidades de catástrofes naturais eram analisadas por institutos como o Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos (1994), a Rede Brasileira de Pesquisas sobre Mudanças Climáticas Globais (2007) e o Centro de Ciência do Sistema Terrestre vinculado ao INPE (2008).
No entanto, era necessário um sistema de alerta responsável por utilizar “competências científicas e tecnológicas de várias áreas do conhecimento”. Então, no mês seguinte, o Governo Federal junto com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações aprovou a criação do Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais, o CEMADEN.
Diferente de outros institutos criados anteriormente, o Centro Nacional foi desenvolvido com foco no monitoramento e emissão de alertas para ameaças naturais. Atualmente, está presente em 1.058 municípios, considerados prioritários devido ao histórico de desastres.
Esse monitoramento leva em conta os três tipos mais comuns de ameaças naturais no território brasileiro, que são: movimentos de massa, enxurradas e inundações.
Somente no mês de dezembro de 2021, o Cemaden emitiu 516 alertas de desastres naturais de origem geo-hidrológico, ou seja, aqueles que levam em consideração a água subterrânea em atuação com o ambiente, como inundações, enxurradas e deslizamentos de terra.
No entanto, apesar do alto número de alertas, poucos são os que se tornam ocorrências. De acordo com a diretora Regina Alvalá, o instituto classifica os riscos em quatro níveis: muito alto, alto, moderado e de observação. Felizmente, a maior parte das emissões são classificadas como moderadas.

Para essas análises são utilizados, principalmente, pluviômetros automáticos, que medem a quantidade e a intensidade das chuvas, e os radares meteorológicos, na qual enviam informações importantes para a emissão de alertas sobre as chuvas.
Qualquer pessoa com acesso a internet pode encontrar as informações destes equipamentos e o monitoramento em suas regiões por meio do Mapa Interativo, elaborado pelo Instituto.
O mapeamento de riscos
O Instituto de Pesquisas Tecnológicas - IPT é outra organização que contribui para o monitoramento. Por meio do mapeamento de áreas de risco e soluções para diminuir os desastres naturais, o IPT é referência para os órgãos de governo e seus planos de ação.
Em parceria com o antigo Ministério das Cidades, o Instituto também desenvolveu uma metodologia de monitoramento que identifica setores com níveis de risco mais baixos, sem a necessidade de ações emergenciais. Nesta etapa, as casas recebem vistorias da prefeitura para analisar se a ocupação está aumentando.
Já as regiões mais pontuais de alto risco, que precisam de intervenções, são priorizadas para obras e investimentos.
“A ideia principal era que existisse um padrão, de norte a sul do país, para identificar que o mesmo grau de risco alto que temos aqui, era um alto risco ali. E, dessa forma, conseguir priorizar as obras e investimentos que seriam realizados”, explica Alessandra Corsi, 51, geóloga e pesquisadora na seção de riscos e desastres naturais no IPT.
Essas informações, junto com os mapeamentos, são utilizados pelos Cemaden para melhorar suas fontes de conhecimento.
Prevenção e autoproteção
O Plano Municipal de Redução de Risco da cidade de São Paulo foi elaborado com o intuito de indicar intervenções necessárias para reduzir o grau de risco, sem que haja uma reurbanização.
Para implementar um novo plano, a Prefeitura do estado, junto com a Defesa Civil, realiza cursos de capacitação que explica quais são os motivos para que exista o risco, pensando que quem participa desse curso pode auxiliar no mapeamento e observação do campo durante as chuvas.
Além disso, os moradores podem tomar algumas medidas de proteção antes de construir suas casas para evitar deslizamentos. O que, de início, pode parecer pouco, a longo prazo pode salvar vidas.
O uso dos pilares de sustentação para que suas casas sejam melhor construídas é uma das principais coisas a se fazer. Além de, considerar colocar um muro atrás das casas para caso de escorregamentos e o uso de canaletas para conduzir a água e não ficar na encosta.
O que acontece muitas vezes é que não temos a percepção de risco, ainda mais quando acabamos de nos mudar para aquela área. Por achar que ali é um local seguro você não toma essas medidas na hora de construir, mas é algo que ajuda a se proteger e melhorar suas construções, expõe Alessandra.
Já para as inundações e enchentes, a pesquisadora acrescenta que a criação de piscinões, processos de contenção de encostas que diminui os deslizamentos e a limpeza de bocas de lobo ajudam, mas são insuficientes para que o risco definitivo seja afastado.
O documento ainda cita a necessidade de criar um Plano de Habitação para as famílias que residem nesses locais dentro de cada subprefeitura, em que a população daquela área deverá ser realocada e quais ações devem ser feitas para prevenção, preparação e recuperação das regiões.
Dentre essas famílias, está Daniel Garcia, 34, outro morador do bairro Caboré, que vive próximo a residência de seus pais idosos. Ele conta que já perdeu as contas das chuvas que alagaram as casas, danificaram os móveis e deixaram os moradores à própria sorte. No último verão, o rio que fica embaixo da casa de seus pais transbordou e invadiu o local. “Chegou a um metro lá, já na minha chegou a 50 cm”, relembra.
“Eu gostaria muito que coisas fossem feitas para melhorar a situação que os moradores passam durante os alagamentos, queria que pudéssemos sair dessa situação”, conclui Daniel.
A educação transforma
A vontade de uma vida melhor para todos faz com que os entrevistados acreditem em algo em comum: é necessário também educar e capacitar a população, principalmente as novas gerações.
“É preciso fazer um trabalho de conscientização, de orientação, começando com as crianças. O idoso e o adulto é mais difícil de conscientizar porque já se acostumou com aquilo, mas a criança não”, conta a moradora Priscila.
Porém, os adultos tem um papel fundamental, juntamente com as associações dos bairros, com os líderes comunitários e os órgãos públicos para realizar por meio de campanhas e incentivos com cartilhas, palestras e imagens, maneiras de conscientização da população, para que os jovens não convivam no futuro com essa triste realidade.
Por isso, para auxiliar no incentivo da população sobre práticas preventivas e sustentáveis, e ter melhorias gradativas, o Programa Escola +, realizado pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, tem promovido ações formativas na educação formal e não formal.
A iniciativa foi desenvolvida em três frentes, Educação em Redução de Riscos e Desastres - ERRD, Alertas sobre riscos de desastres e protocolo de proteção à vida. As atitudes visam criar projetos e ações locais desenvolvendo a resiliência em cada comunidade.
Além dessa iniciativa, o governo paulista em parceria com a Secretaria Municipal de Infraestrutura Urbana e Obras - SIURB, Secretaria Municipal das Subprefeituras - SMSUB, Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente - SVMA, Secretaria Municipal de Habitação - SEHAB e a Secretaria Municipal de Educação - SME criou um novo novo plano municipal de redução de risco da cidade de São Paulo.
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